Transcrevemos um artigo editado por 'Periodismo Humano', referente à Fundação Amaranta, das Irmãs Adoradoras em Espanha.
«As mulheres sentem-se
em casa e para muitas é-o durante uma boa temporada. Estamos numa casa de acolhimento
da Fundação de Solidariedade Amaranta, que, no âmbito do tráfico de mulheres para
fins de exploração sexual e de mulheres em contexto de prostituição, as acompanha
há cerca de uma década, ao abrigo de um programa que, em Espanha, para além das
Astúrias, tem sedes em Granada e Palma de Maiorca. Um programa chamado SICAR, na
região nortenha, que nasceu sob a alçada da Congregação das Religiosas Adoradoras, com uma missão já centenária, em parceria com a Fundação Municipal de Assuntos Sociais de Gijón, quando a Policia começou a desmantelar
redes de exploração e tráfico e precisou de um lugar onde colocar as mulheres sem
ser os calabouços. Mas não só, porque neste espaço também se atende mulheres
em risco de exclusão social e seus filhos. É uma Fundação na qual os técnicos
sociais, o psicólogo, a advogada… lutam não só contra o tráfico, mas contra
a re-vitimização que a sociedade tolera em relação às mulheres com as
quais convivem diariamente e às quais - nos recordam – olham, a miúde, a partir
dos seus sofrimentos e carências em vez de olhar as suas “forças e
potencialidades”.
Conversamos com uma
das técnicas sociais, cuja identidade mantemos oculta por razões de segurança, e
que está implicada no trabalho da Fundação desde os seus inícios. “Nesta década,
o que tem sofrido mais transformações é a imagem sobre as mulheres… São mais
que prostitutas, que vítimas de tráfico… Uma vez uma delas disse-nos que o que
mais gostava é que as tratamos como mulheres e não como prostitutas. É isso que
queremos, na intervenção centramo-nos na pessoa e não nos problemas”.
Periodismo Humano: Com as vítimas de
tráfico o vosso trabalho é integral. Em que consiste?
A. Fazer uma análise global da situação da pessoa, abordar os aspetos
de saúde e bem estar (toda a dimensão relacional, a diversão, o descanso, as
relações afetivas…), de inserção e laboral, jurídico e da vida quotidiana, se
vivem connosco. A nossa metodologia baseia-se na capacidade de analisar,
partindo de uma valorização da situação compartilhada com a mulher (onde está, o
que a preocupa, o que necessita e qual a direção que quer tomar). E vamos dando
diferentes apoios para o ir conseguindo, de tal forma que, se uma mulher não
quiser abordar determinadas temáticas de âmbito psicológico, não se faz. Não abordamos
a temática do abandono da prostituição se ela não quiser, se sim, pensamos
alternativas… mas sempre com a mulher.
P. Como têm evoluído
as redes de tráfico desde que começaram a trabalhar nesta área?
A. Quando começamos, há dez anos, eram
redes organizadas de traficantes; agora vão aparecendo redes informais de familiares,
de amigos que se convertem noutra via para que as mulheres possam chegar aqui
para ser exploradas.
Na rede informal,
uma das dificuldades prende-se com o facto da mulher não se perceber como
vítima de um delito, interpretando que é uma amiga ou um parente que lhe possibilita
um trabalho, o dinheiro para a viagem…. Não o interpreta como uma forma de
exploração, mas como uma ajuda para chegar ao lugar para onde quer ir. Costuma ser
gente da sua aldeia ou cidade, uma vizinha, uma amiga que esteve nesse local ou
que conhece outras mulheres, que têm os seus contatos próprios, o que facilita
a viagem e, à chegada, o exercício da prostituição.
P. Há organizações
que entendem que a percentagem de mulheres que exercem a prostituição e que são
vítimas de tráfico é altíssima - superior a 80% - porque a situação de
vulnerabilidade em que se encontravam no país de origem, como refere a lei
contra o tráfico, forçaram-nas a isso. Qual é a vossa perceção?
A. …O importante é entender a sua
história de vida como mulher, como mãe, como trabalhadora pobre… não como tráfico.
Claramente nem todas, nem a maioria das mulheres prostitutas são
vítimas de tráfico. Não nos podemos agarrar à questão da vulnerabilidade,
porque as pessoas não são vulneráveis, as circunstâncias que vivem é
que as tornam vulneráveis… Não podemos negar que isso as coloca numa
situação mais fácil para que sejam exploradas.
P. Uma das vossas
preocupações é a de que as mulheres vítimas de tráfico não se re-vitimizem.
A. …A nossa experiência é que a
coragem, a opinião, as decisões tomadas por uma mulher que está na prostituição
muitas vezes são menosprezadas, ou pensamos que não foram tomadas com liberdade.
Isso fá-las ainda mais vulneráveis; ao desprover credibilidade às suas opções,
estamos a vitimizar ainda mais, porque estamos a fazê-las irresponsáveis em
relação à sua tomada de decisões; estamos constantemente a trata-las como
menores de idade… Mas a nossa tarefa não é julgar… A mulher tomou umas decisões
em detrimento de outras, ajudemo-la a refletir, a assumir as rédeas da sua vida
para, a partir daí, a construir…
Sinto alguma
obsessão em aprofundar a questão de porquê duas pessoas, perante o mesmo
problema tomam decisões diferentes, que a posicionam numa situação mais precária
ou melhor. É dizer, um mesmo ponto de partida não supõe uma relação direta de causa-efeito:
quem é essa pessoa, porque tomou essa decisão, o que é que pôs em jogo ao
tomá-la. Estas mulheres não são tontas, as suas decisões não estão
mediatizadas. Todos pomos em jogo a nossa liberdade nalgum momento da nossa vida…
Outra coisa é que, por causa da situação de vulnerabilidade, tenha um risco acrescido
ou um custo demasiado alto…
Mas todas estas
coisas fazem-nas mais vulneráveis… e estamos a vitimizá-las. Dar-lhes a palavra
é escutar aquela que diz que sabia que vinha exercer a prostituição, que se expôs
a pagar essa dívida. Porque é que dizemos que essa pessoa não está a tomar uma
decisão livremente? Estará condicionada pela vulnerabilidade? Sim. Mas, se não
trabalhamos com elas a partir da responsabilidade das suas decisões, dos custos,
continuarão a repetir esse comportamento, porque as estamos a fazer
irresponsáveis perante a sua própria vida. Por exemplo, quando voltam para a
prostituição depois de terem deixado a rede de tráfico, porque é que lhes queremos
exigir que não voltem a prostituir-se? Que alternativas reais lhes oferecemos?
O trabalho doméstico? A nossa advogada, Clara Corbera, di-lo muitas
vezes: é o despotismo ilustrado - tudo pelas mulheres, mas sem as mulheres.
Quando vivemos com
as mulheres e conhecemos as suas origens, não só intelectualmente, mas estando com
elas, compartilhamos o seu tempo, a vida vê-se de forma distinta. Esta
perspetiva é muito valiosa: o que cada uma conta o porquê de ter feito as coisas...
Porque, de outra forma, anulamo-las. Voltamos a infantilizá-las. Temos que ver
de onde vêm e como isto tem influência na redução dos níveis de resiliência, isso
é uma trajetória de vida e uma aprendizagem sobre as consequências das próprias
decisões. Que haja exploração é uma coisa, mas à hora de nos sentarmos diante
destas mulheres e de falarmos com elas, não as anulemos, ainda que o
façamos em nome delas.
Trata-se de
trabalhar com as mulheres de maneira adulta, refletir com elas sobre o porquê,
ser honestos e assumir que não temos alternativas reais para que uma mulher
decida. É uma questão de igualdade de oportunidades.
Estamos a fazer um
trabalho de investigação com a Universidade de Brasília e uma das dificuldades
que encontramos são os limites do conceito de tráfico, porque exclui uma série
de realidades. Estamos a atender o delito e não as histórias de vida: mulheres
pobres, em que a desproteção nos países de origem, prima a todos os níveis. Recuperamos
as histórias de vida de uma zona do Brasil, as suas trajetórias vitais, a sua
realidade em termos de tráfico, de exploração, prostituição em Espanha e, nalguns
casos, o retorno.
No Brasil, um
país com larga tradição de escravidão, o tema do tráfico analisa-se desde o ponto
de vista da exploração que continua muito presente: exploração de trabalhadores
pobres para a prostituição, para o trabalho doméstico… Aqui, o enfoque em
termos de recurso à prostituição dificulta muito o trabalho porque é tendencioso.
(Javier Bauluz)
P. Porque é que um tema tão grave como o
tráfico de mulheres tem tão pouca repercussão social?
A. O mesmo se passa
com a violência de género. Um problema não se transforma em problema social até
que não afete a vida quotidiana de cada um. É o que se passa com a prostituição
de rua, porque nos incomoda… O tráfico, a quem é que importa? É invisível
porque afeta muito pouca gente, porque há muitos interesses económicos e é
muito ideologizado. Se em vez de se debater tanto sobre a legalização ou
abolição da prostituição, nos puséssemos todos a combater o tráfico e a
exploração e a criar mecanismos para os combater… veríamos como diminuía. Este
debate inviabiliza o tráfico e, como não há consenso, metemos tudo no mesmo
saco.
P. Será que mudaria a perceção da
prostituição se conhecêssemos as histórias das vítimas de tráfico?
A. Este é um mundo
desconhecido e cheio de mitos. Depende da perspetiva com que o olhamos: se
continuamos a olhar as mulheres como vítimas, como pessoas com graves
problemas, marcadas para toda a vida… Certamente que há gente assim, mas não
só. O problema não é mostrar, é o que é que mostramos, e isto está
completamente condicionado pela análise que é feita. Se não mostrarmos uma realidade complexa não vamos poder desenhar
soluções complexas. Por uma questão de responsabilidade, deveríamos ir mais
longe. Se estamos todos os dias a ver o que vemos, teríamos que transmitir que
se trata de uma realidade muito complexa; por isso, analisemo-la sob o
paradigma da complexidade.
Quando chega uma
mulher e te pergunta: ‘tenho que ter sido prostituta ou vítima para
que me ajudes?’ É demolidor. ‘O que é que acontece se não sou vítima, não
me ajudas?’ E tens que dizer-lhe: para poderes ter direito a isto e a isto, tem
que ser… Quando sabes que essa pessoa - pelo facto de ter passado por tanto na
vida - está a dizer: ‘ajuda-me, deita-me uma mão’. E escutar isso, para mim é
muito duro...
Estamos a dizer,
primeiro denuncia para podermos ativar a proteção; o mesmo acontece com a violência
doméstica. Eu questiono isso. Mas estas são as regras e temos que jogar com
elas. Nós, as entidades, questionamos o
facto de a denúncia constituir o elemento base que ativa a proteção. Mas estamos a dizer-lhes
‘vamos-te ajudar, vamos-te proteger; se quiseres, vamos-te arranjar um lugar para
estares, vamos-te ajudar a procurar emprego…’ Mas na realidade não é assim. As
suas opções laborais são iguais às de outros tantos… e ainda têm filhos a quem
sustentar, e expectativas… E dizemos-lhes que esperem e se,
finalmente, integram o mercado laboral, com alguma sorte, será no ramo de
hotelaria. Isso é hipocrisia. Terá que escolher essa opção ou prostituir-se. Na
realidade estamos a pedir uma coisa que tem pouco a ver com as suas necessidades
e perspetivas reais. Dizemos-lhe: 'deixa a prostituição'; mas, quais são as alternativas?
Não lhes compensaria continuar na prostituição se tivessem alternativas, porque,
emocionalmente, não lhes compensa.
(Javier
Bauluz)
P. Como é que percecionam
os efeitos emocionais que a prostituição tem nelas?
A. Afeta-as no conceito de si mesmas
- autoconceito -, nas relações afetivas e sexuais; cria-lhes instabilidade, medo.
Emocionalmente tem um custo elevado. Desenvolvem os seus próprios mecanismos de
defesa para minimizar o custo emocional de viver duas vidas paralelas, de não
poder mostrar o que são… Afeta-as ainda no modo de estabelecer relações, na própria
vivência da realidade…
P. Uma das tarefas mais custosas para a
Fundação é documentar as mulheres vítimas de tráfico que chegam indocumentadas.
Mas, para além disso, a influência que constitui para as próprias mulheres o
facto de estarem numa situação regular ou irregular…
A. Se não têm documentos,
a inserção laboral é impossível, pelo que a única opção é a ‘economia submersa
ou paralela ’, que volta a ser o trabalho sexual, o serviço doméstico ou o
cuidado a pessoas idosas.
P. Como evoluiu a
visão da prostituição na equipa da Fundação
de Solidariedade Amaranta?
A. Quando começámos,
em 2002, eramos super abolicionistas… Institucionalmente não temos uma posição para
além de que a prostituição tem muitos custos para as mulheres que a praticam.
Temos vocação de estar com as mulheres e, quando se está com elas um e outro
dia, há dias que somos super prodireitos e outros o contrário. Fomos evoluindo
ao deparar-nos com a complexidade da realidade.
Nenhum de nós é prodireitos
nem abolicionista. Este é um debate secundário. Em que é que
nos enriquece? Em ideologia? Queremos estar com
as mulheres, percecionando que a prostituição não é um tema positivo, que está
subjacente um problema de igualdade de oportunidades. Este trabalho cria em nós
impacto e, quando faço esta reflexão, parto do contraste das ideias com a vida.
Há fóruns de reflexão onde, quando tomamos esta posição, nos colocam do lado dos
exploradores.
O erro radica na
casuística: haverá sempre uma situação que ilustrará a posição que queiras apoiar.
Mas nós apoiamos categorias mais amplas, que tenham subjacente que estamos a falar
de pessoas, de trabalhadores pobres, de Direitos Humanos, de género….
Há já muitos anos
que gostaríamos que alguém desse visibilidade a este tema, realçando os pontos
fortes destas mulheres, sem negar o sofrimento, mas acentuando tudo o demais. De
outra forma – mostrando o lado duro - estamos a revitimizar; a evidenciar as suas
carências e não as suas potencialidades. E é com isso que elas constroem a
imagem de si mesmas. Temos que apoiar as pessoas para que possam viver com a
sua realidade; não dizer eternamente: são prostitutas, vítimas de tráfico, que sofreram
muito na vida, que sofreram porque a bagagem que trazem as subjuga… Mas essa é
a nossa tarefa. Porque é que nos empenhamos em mostrar os seus sofrimentos
e não as suas fortalezas? Porque também depende de como nos situemos perante
as pessoas, de como olhemos a vida.
Estas mulheres não
são só prostitutas, são mulheres, mães… como qualquer uma de nós, e temos muito
a aprender delas. O que é que acontece se uma mulher for eternamente
prostituta ou vítima de tráfico? Imagina que alguém, oito anos depois,
lhe recorde isso… Fica destroçada…»