«Fui dos poucos privilegiados que
participaram na inauguração de um Gabinete de Apoio a Mulheres Prostituídas e
em Risco. Fiquei muito grato pelo convite, porque tenho uma especial admiração
por aquelas pessoas, Religiosas, Técnicos e Voluntários, que dedicam a sua vida
a mulheres, que consideramos indignas de se sentarem ao nosso lado nos bancos
da igreja e muito mais indignas de comungarem o corpo imaculado do Cristo
libertador. Admiro estas e estes “samaritanos” que, por amor, passam a vida a
“cuidar do outro” a exemplo do Bom Pastor que vai amorosamente procurar a
ovelha tresmalhada. “Ovelha tresmalhada”, digo eu (por)que me classifico no
grupo dos bem-comportados, esquecendo a lição do fariseu e do publicano.
Admiro estas pessoas, que,
animadas umas pela fé num Deus que é Pai de todos, outras pela consciência de
que todos somos irmãos, passam, os dias, calcorreando estradas e matas, e, as
noites, percorrendo as ruas da Baixa, batendo às casas de alterne e, resistindo
a insinuações e equívocos, vão escutar e acolher mulheres cujas trajectórias de
vida foram, de um modo geral, via-sacras sem Cireneus. Não vão para converter
ninguém, até porque ninguém converte ninguém: cada um só pode converter-se a si
próprio. A sua única regra é, nesta “Luta contra a Pobreza e a Exclusão”, o
Amor ao “outro”, a qualquer “outro”, especialmente ao que está em maiores
dificuldades. Vão dizer-lhes que são amadas, quanto mais não seja pelo Deus que
as criou à sua imagem, mesmo que não o conheçam ou não o queiram conhecer.
Um parêntese para dizer que,
nesta homenagem, quero envolver tantos samaritanos de outros “tresmalhados”,
igualmente ignorados pela sociedade e pela comunidade cristã.
Mas, como lá foi dito, os
protagonistas são aquelas mulheres ditas “perdidas”. Delas é que eu devia
falar. O problema é que eu não sei falar da sua vida difícil, do sofrimento
disfarçado, do prazer simulado, da violência escondida. Só sei que nunca tive a
coragem de as procurar para lhes falar de uma esperança possível, de lhes
anunciar que a vida não acaba na agonia da sexta-feira santa nem com a
crucifixão em tantas cruzes que a humanidade foi inventando. O que me dói é
que, considerando-me cristão e crendo que amo seriamente a Jesus Cristo, afinal
só O amo na Sua Pessoa, mas não na Pessoa a que Ele se une intimamente; na
alegria da hóstia comungada, mas não no irmão esfarrapado à porta da igreja,
que olho de lado e com medo de lhe dirigir a palavra ou apertar a mão como os
judeus faziam aos leprosos. E ponho-me a pensar que cristão sou eu, que fé é a
minha, que caridade é que pratico. Pergunto-me se amo realmente Jesus Cristo ou
se não se trata apenas de um amor platónico, um amor fácil que logo esqueço
quando Ele me aparece escondido numa prostituta, num sem-abrigo, num cigano ou
num drogado. E, cheio de angústia, interrogo-me se não serei um amante infiel
que apenas O recordo quando me sinto em dificuldade ou Ele me aparece no
aconchego da celebração litúrgica, no quentinho da meditação da sua Palavra,
nalgum alienante “monte Tabor” onde “é tão bom ficarmos aqui” longe de todas as
dores e sofrimentos do mundo, ou na partilha de algumas palavras escritas ou
afirmadas num qualquer colóquio em que participo.
Mas basta de lamentações
catárticas, porque o arrependimento sem conversão nada vale. Por isso, vou dar
um pouquinho de atenção às verdadeiras protagonistas voltando àquela cerimónia
tão simples e rica como profunda e amorosa. O que mais me marcou foi a Palavra
de abertura, que descreve o encontro de Moisés com Deus que, do meio da sarça
ardente, lhe ordena: “Tira as sandálias, porque o terreno que pisas é sagrado”
(Ex 3,5). Este texto quis “apenas” lembrar que aquelas mulheres, ludibriadas
por gente sem escrúpulos, violentadas na sua alma, exploradas no seu corpo,
profanadas na sua dignidade de pessoa, ignoradas por todos mesmo por aqueles
que as usam, são “terreno sagrado”, porque são uma das mais dramáticas versões
da sarça ardente. E, se são “terreno sagrado”, devem ser tratadas
verdadeiramente com “pés descalços”, com “mãos delicadas”, com a reverência e o
cuidado de quem é imagem visível de Jesus pregado na cruz. Só podemos
identificar estas mulheres como “terreno sagrado” se as virmos com os olhos da
fé, de uma fé radical que nasce do encontro íntimo com Jesus, e se estivermos
profundamente convictos de que “no início do ser cristão, não há uma decisão
ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa
que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Gostaria de terminar com duas
curtas notas.
A apresentação do projecto à
Segurança Social deparou-se com um obstáculo sério: as prostitutas não existem
oficialmente e, portanto, não constam de nenhuma das suas várias alíneas. O que
valeu para a sua aprovação foi a insistência de quem está no terreno e a
compreensão, depois de um longo processo negocial, de que se tratava de um
fenómeno de tal dimensão que não podia ser ignorado, mesmo utilizando uma
palavra tão “inconveniente” na justificação do projecto. Tão púdicos que nós
somos… mas em tão poucas coisas!
Para as comunidades eclesiais,
não há pastoral mais marginalizada que a pastoral dos marginalizados. Somos
comunidades que lemos e ouvimos ler a Palavra de vida eterna, celebramos com
alguma dignidade a nossa fé, praticamos exercícios de caridade, sobretudo com
algumas migalhas do nosso supérfluo, mas ignoramos ou desprezamos os
mal-comportados, os que “não respeitam a lei de Deus”. Tão puros que nós somos…
mas em tão poucas coisas!
E tudo ficaria bem e em paz não
fora aquela solene advertência de Jesus: “Em verdade em verdade vos digo: os
publicanos e as prostitutas preceder-vos-ão no Reino de Deus” (Mt 21,31). Será
que Jesus disse mesmo tal barbaridade!?»
José Dias da Silva (Correio de Coimbra, janeiro de 2010)