segunda-feira, 14 de maio de 2012

Comprar o jornal


          Compras o jornal para ler notícias. Admito que possas ter um interesse particular pelas páginas de política, de desporto ou de sociedade. Mas, claro, compras o jornal para ler notícias – não pagas para jogar às palavras cruzadas ou para ver os signos. No jornal (o que tu compras) procuras informação. No regional, pode até acontecer que a tua vizinha apareça numa fotografia, ou que a prima de alguém tenha sido notícia por qualquer coisa. Então, compras o jornal. Vais além da capa. Procuras a tal fotografia, ficas mais tempo numa secção que outra – afinal nem percebes nada de futebol, só queres mesmo saber se a miúda do acidente já recuperou. Lês tudo, na ordem certa: começas em Coimbra, saltas as Cartas do Leitor e as parcerias com a UC, passas no Tome Nota, segues do Desporto para a Região, Nacional, Internacional e Opiniões.
És um leitor, antes de começar já separaste as notícias dos classificados. Mas também os vais ver - se não fossem do jornal não vinham com ele. Sabes que são parte do financiamento. É ali que entra verba para o jornalismo livre e independente! Depois da publicidade, vais conhecer os outros anunciantes, os que (também) pagam aos teus jornalistas. Há apartamentos, vivendas, terrenos, lojas, e de repente rabos, mamas, estrelinhas, fotos reais e primeiras vezes. Não é uma questão de pudismo, a verdade é que os contactos, o “relax”, começam a roçar o escandaloso. Há uma linha que separa… devia haver! Aqui não há espaço para separações, és atacado pelos números das meninas, com promessas de beijos na boca e carícias “mesmo até ao fim”.

            
             Fecha o jornal, deita fora os classificados. Mesmo assim fica a vergonha de teres visto mais do que querias. Volta atrás no tempo, regressa ao início: quando compraste o jornal (para ler notícias!). Sim, estás seguro, não pediste um cardápio sexual como bónus, não havia nenhuma promoção, nenhum brinde. Não levaste, por engano, um magazine porno! Eram os classificados do teu jornalzinho de todos os dias, com quem costumas tomar café. Mas … o teu jornal? E as meninas que estão lá – amanhã outra vez? Sim, com outros nomes, os mesmos contactos. A mesma “primeira vez” e aquele fio dental arrepiante. Os peitos, as estrelas e as promessas – que tu sempre soubeste que existiam, que o teu jornal mantinha num nível de decência aceitável.
             Já fizeste as palavras cruzadas e já apreciaste as previsões astrais. O jornal vai agora perder-se na tua mala, de onde só poderá sair no furo de almoço. Mas, ainda, e como, se a surpresa da manhã não foi totalmente digerida. Terá sido um erro. As imagens extraordinariamente nítidas, excessivamente aumentadas. O paginador, o designer, alguém há-de assinar a errata na próxima edição. Sabes, confias, que o teu jornal não se vende assim. Mas amanhã elas voltam ao mesmo sítio. Pago a 20 ou 30 euros diários, com prémios de regularidade – aumentos, no tamanho; descontos, no preço.
            Manténs ainda o hábito de separar os classificados. Até que, um dia, no meio das linhas do jornalismo (livre e independente) começarás a perguntar-te que meia hora de sexo financiou a entrevista. Imaginas uma redação que emprega a loira de luxo, a joia de angola, a travesty e a portuguesa furacão. Nesse dia vais perceber que não compraste o jornal para ler notícias. Vais perceber (tarde demais?) que não foste sequer tu que compraste o jornal – foram os classificados. 

Mariana Pardal (Voluntária da Equipa ERGUE-TE)

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